quarta-feira, dezembro 17, 2003

Mais do mesmo

Ela virou odontopediatra e resolveu estudar cinema. Não quer ter filhos, mas um dia, quem sabe, vai casar. Continua porra-louca, graças a Deus. Ele é cineasta, vive duro, já fez uns vinte curtas, viajou para a Europa e espera ganhar algum prêmio bacana. Ela é socióloga, está terminando o mestrado em antropologia, casou há três anos; o outro também é quase mestre em veterinária; aquela é administradora, trabalha numa grande empresa, namora firme. O baixinho enfezado, agora publicitário, está mais fortinho e gente boa do que nunca. Já o cabeludo heavy metal mostra hoje um estilo playboyzinho, óculos escuros na cabeça, tênis cool de professor de lambaeróbica, body combat e afins. A musa continua deslumbrante, cor de Camila Pitanga, charmosa, inteligente e muito, muito simpática. Modelo e jornalista, mora no México e namora um fotógrafo argentino. Coisa de filme. O mascote virou um homão, barba mal-feita, enorme e trabalhador, mas com um quê de moleque naquele boné para trás. O CDF continua sério e educado, um amor de pessoa, advogado numa firma de consultoria, namorando certinho. Futuro presidente.

E todos nos perguntamos o que ainda seremos. Estamos começando, mas às vezes parecemos velhos. Cansados, ranzinzas, calados, repletos de objetivos, exalamos aquele odor ocre da ambição desvairada. Temos pressa de viver logo, conseguir o Emprego Perfeito, casar com a Alma Gêmea, combater o Bom Combate. Havemos de ser felizes, irrepreensivelmente felizes.

Enquanto nossas vidas escorrem pelo canto da boca, pelos vãos entre os dedos, que guardam apenas o que nos parece grande e importante demais, deixamos de nos reunir para celebrar e relembrar, conversar sobre o nada, o clima, o futuro, os anjos. Nossas infâncias servem para nostalgias vazias, jamais para lições. Guardamos o sabor do pirocóptero, da bala soft, do novo LP da Legião. Mas, ao contrário de anos atrás, quando um simples big bol continha o gosto da felicidade no clímax do chiclete escondido numa bolota de açúcar e anilina, quando um insalubre saquinho de plástico trazia o sabor supremo e pastoso do doce de leite chupa-chups, hoje depositamos a alegria em fichas erradas, esperamos muito e acreditamos pouco, queremos uma vida mais doce que as moedinhas e cigarros de chocolate. E por isso mesmo estamos sempre fantasiando que antes era melhor, hoje em dia as coisas estão difíceis, mas o futuro, esse eterno aliado, nos aguarda com um pote de ouro no fim do arco-íris.

Sentada ali, na boa e velha Cobal do Humaitá, eu me sentia uma relíquia aos 25. E imaginava onde estaríamos daqui a cinco anos, todos nós, da odontopediatra-cineasta ao advogado precocemente calvo, da antropóloga à modelo mais inteligente que conheço. Estaremos ali, na mesma Cobal, rindo do passado, "quando a vida era fácil"; estaremos felizes conosco, com nossas vidas como são, com nossas linhas de expressão, dificuldades, taletos enjeitados e coleções de pequenas amarguras.
Ou estaremos, ainda, buscando a felicidade no velho gosto dos guarda-chuvas de chocolate, jogando Atari na Casa da Matriz, especulando o porquê do Kri ter se transformado em Crunch, pensando que o Renato Russo é insubstituível e torcendo para que, daqui a cinco anos, tenhamos realizado todos os nossos objetivos, mas que tragamos guardados na manga fragmentos de ambições suficientes para nos arrastarmos por mais algumas décadas de nostalgia regada a coca-cola.

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