terça-feira, abril 13, 2004

A moça

Ela varre com muito mais capricho do que eu quando escrevo. É jovem; uns 23 anos, no máximo. Desce a escada da rodoviária, degrau por degrau, puxando cada resquício de poeira com afinco indescritível. É um ritual: primeiro o pé esquerdo, depois o direito, a vassoura começando pelos cantos em direção ao meio. Quando tudo parece pronto, ela recomeça, no mesmo degrau, até atingir a perfeição. Os tênis, surrados, um dia devem ter sido brancos. As meias, azuis e desbotadas, não combinam em nada com a camisa branca de golas verde-musgo com o nome em letras garrafais: SOCICAM. Ela é terceirizada.
A canela cheia de marcas denuncia uma infância feliz, longínqua, de brincadeiras. O rosto dela é simples: as sobrancelhas jamais devem ter visto uma pinça, mas os traços finos suavizam a expressão que, no fundo, parece ser de indiferença. A moça limpa a escada como quem vê televisão ou espera na fila do banco – varrer os infinitos degraus da rodoviária parece um destino ao qual está conformada. Às vezes, ela sussurra uma música irreconhecível. Pára por alguns segundos, depois volta, exatamente no mesmo tom – provavelmente é um refrão. Seus movimentos continuam a se repetir, impecavelmente. A moça é parte da paisagem cheia de histórias dos que vão e dos que vêm diariamente, mas, às 23h50 de uma sexta-feira abafada, ela varre a escada que é só dela. E nada me faria mais feliz nesse momento do que saber se a moça tem um sonho.

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