sábado, maio 29, 2004

O mar

Tenho um amigo que queria ser historiador ou sociólogo, mas desistiu por pensar que seria muito pobre com o salário de professor. E também porque o que desejava mesmo era escrever sobre muitos assuntos, temas que não conhecia, que talvez ninguém por perto conhecesse. Ele caçaria as informações pelo mundo, conversaria com todos os especialistas das mais remotas áreas, e assim se tornaria um pequeno entendido em grandes coisas. No fundo, não saberia muito sobre cada assunto, mas teria a toda hora uma nova paixão para pesquisar, e, a melhor parte, um motivo para escrever.
Resolveu ser jornalista.

Quando percebeu que o trabalho envolvia muito mais - e, de certa forma, muito menos - do que imaginava, ele resolveu continuar assim mesmo. Afinal, o resto da profissão não era de todo ruim. A esta altura, já sabia que seria "pobre" de qualquer forma, fosse professor ou trabalhasse na redação de uma revista, sua grande vontade. Mas tudo bem: na escola ele tinha aprendido que o bacana era fazer o que gostava, que no fundo as coisas dariam certo para os esforçados e tal. Além do mais, o jornalismo lhe parecia uma profissão interessante em termos de intervenção social. Ele realmente imaginava que poderia ajudar a mudar algo, senão o mundo, pelo menos o seu indigente município, informar sobre coisas que ninguém imaginava, "formar opiniões".

Ele era também atleta, e o sonho jornalístico por conta disso foi adiado. Sonhava ir a uma olimpíada, embora o esporte não fosse o objetivo supremo de sua vida. Dedicou-se, foi mais longe do que esperava, mas ainda assim não passou da arrebentação da praia, somente chegou a vislumbrar o alto-mar. Nadou de volta por vontade própria.

Enfim, a faculdade. Aos poucos, a vida real ia dando as caras, mas, no íntimo, ele sempre confiava no seu taco, apesar da insegurança em inúmeros momentos. Afinal, aprendera no colégio que deveríamos ser bons profissionais e boas pessoas, pois assim adviria o paraíso na Terra - não um paraíso divino, mas um feito de bens, mulher, filhos, trabalho digno, carreira, férias e décimo terceiro salário. Recusava-se a puxar o saco, bajular, pedir para entrar pela janela. "Hei de vencer por meus próprios méritos", ele pensava nessas frases prontamente heróicas e admiráveis. Viajou, jogou, investiu, desistiu, se há sorte, ele não sabe, nunca viu.
Exagerado, sempre, dramatizou a vida o mais que pôde. Fotografou partes do que presenciou, criou uma fotonovela auto-referente, colheu telefones, endereços e e-mails freneticamente, visitou locais extraordinários, meio sem querer. Em certo ponto, numa dessas bandas formidáveis, pensou que a melhor vida que poderia ter seria a de balconista da loja de suvenires do Balboa Park. Tranqüilidade, salário suficiente, local aprazível. Mais uma vez, porém, desistiu da idéia e voltou à "vida real", essa coisa que as pessoas insistiam que existia. Trabalhou, estudou, amadureceu um pouco, mas o mundo não muda, as pessoas vão e vêm e o mundo não muda, mesmo que elas pensem que sim. Olhou para trás e lembrou que, nos últimos quatro mil anos, apenas uns 300 haviam sido de paz. E, mesmo nesses 300 restantes, muitos deviam ter se trucidado por ganância, por meio de sobrevivência ou simplesmente por tédio.

Isso ele percebeu no dia em que se lembrou daquela loja de suvenires. E aí matou a charada: era inteligente, bem-apessoado, tinha boa-fé, mas faltava-lhe aquilo que transformava simples mortais em empreendedores, para o bem ou para o mal - ambição. Resolveu, então, procurar um eterno pleonasmo, um sous venir, algo que lhe lembrasse a pequena loja de suvenires, onde a candura bastava e a ambição morava do outro lado do balcão, de segunda a sexta.

Na última vez em que nos encontramos, ele parecia sereno, num nível aceitável de triste inconformismo com o mundo que não muda e feliz com a busca pela realização daquela sua descoberta. A ambição, o motor da existência, era o que lhe faltava para viver no universo em que as pessoas obtinham "sucesso". Mas aquilo não deixava de ser fruto de uma escolha própria. Finalmente compreendera qual era realmente o tal objetivo supremo de sua vida: não ter nenhum objetivo tão grandioso que chegasse a tomar conta dele mesmo. "Um homem sem ambição é um homem livre", pensou, olhando o oceano, imaginando como seria o alto-mar e dando-se por contente ao decifrar nada além de cada detalhe das ondas na arrebentação da praia.

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